Talvez não se fale de quem cria arte tanto quanto seria necessário, mas muito menos se fala de quem a mantém. Marta Borges é uma técnica de Conservação e Restauro. Convidámo-la para uma conversa com o Jornal Penumbra para saber mais sobre as características e dificuldades desta profissão tantas vezes esquecida.
Fala-nos um pouco sobre ti.
O meu nome é Marta Borges, tenho 23 anos e sou mestre em Conservação e Restauro, com especialização em Património Integrado. Em 2017, ingressei na Licenciatura de Conservação e Restauro, na Universidade Católica do Porto. A minha licenciatura consistia em semanas de quatro dias teóricos e apenas um prático. Isto fez-me procurar outras formas de ganhar mais experiência, através de estágios extracurriculares, em parceria com várias empresas e instituições que me deixavam frequentar os seus ateliers nos tempos livres.
No final da licenciatura, ingressei no mestrado e iniciei a minha atividade profissional como trabalhadora independente. Por vezes, a trabalhar para clientes privados, outras como subcontratação de outras empresas de conservação e restauro, inclusive para algumas para as quais cheguei a trabalhar voluntariamente ao longo da licenciatura.
Atualmente, encontro-me com atelier próprio, a fazer obras com alguma autonomia e a inserir-me, aos poucos, no mercado de trabalho.
Painéis Azulejares Publicitários do Mercado do Bolhão
Retirado do Website martaborgescr.pt
O que te fez escolher Conservação e Restauro?
Durante o ensino secundário optei pelo curso científico-humanístico de Artes Visuais, sem saber ao certo quais seriam as opções para o ensino superior. Apenas sabia que artes era, sem dúvida, aquilo que gostava, não só pela parte prática, mas também pela teórica, surgindo, então, um gosto enorme pela História da Arte.
Ao longo dos três anos do ensino secundário, a minha tia, arquiteta, começou a comprar edifícios do século XIX, na baixa do Porto, quase em ruínas. Reabilitava-os, aos poucos, não só ao nível do edificado, mas a deixá-los em “pronto a habitar”, ou seja, já com mobiliário de acordo com a época. Nesse âmbito, começámos a frequentar leiloeiras e as chamadas “casas de velharias”, o que me fez ganhar um gosto enorme pelo que fazia e que me fez criar “pontes” entre a realidade e a teoria que estudava em História da Arte.
Intervenção de Restauro de uma Pintura de óleo sobre tela na Igreja de Loureiro, Oliveira de Azeméis
Retirado do website martaborgescr.pt
Qual o trabalho que mais gostaste até hoje?
Acho que não consigo encontrar um, mas sim dois. O meu primeiro trabalho, que me lançou como trabalhadora independente, não foi algo classificado. No entanto, foi, sem dúvida, um dos que mais gostei, pelo desafio que foi. Estamos a falar de uma fachada azulejar na cidade de Ovar, com cerca de 800 azulejos removidos da parede para restaurar e voltar a assentar. Esta foi uma das obras que mais gostei, porque foi a obra que me fez abrir o meu atelier e foi a obra mais desafiante, no sentido em que foi a primeira que fiz de forma completamente autónoma. Foram cerca de três meses a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo, que me deixaram exausta, mas com um gosto enorme.
A outra obra de que também gostei especialmente foi a dos painéis azulejares publicitários do Mercado do Bolhão. Para além de ser uma obra classificada e bastante divulgada, que me permitiu ter outra notoriedade no mercado, foi nesta obra que me cruzei com equipas de trabalho das mais diversas áreas: da construção civil, aos arquitetos, engenheiros, serralheiros, picheleiros, eletricistas, fiscais, seguranças, pintores, estucadores, entre outros. Ou seja, foi um trabalho realizado com equipas multidisciplinares que me permitiu aprender um pouco com cada uma, para além da aprendizagem diária e autónoma ao fazer o trabalho de conservação e restauro. Penso que estes dois foram, sem dúvida, os mais desafiantes e os que mais gostei até aos dias de hoje. A primeira por ser a primeira e o Bolhão pela magia do Mercado do Bolhão.
Intervenção de Conservação e Restauro da Fachada Azulejar da Casa da Varina, Torreira, Aveiro
Retirado do website martaborgescr.pt
Fala-nos um pouco sobre o teu Atelier.
O meu Atelier chama-se Marta Borges, Conservação & Restauro, situa-se em São João da Madeira e começou por causa de uma obra. Ainda não tinha atelier aberto, estava ainda a terminar a licenciatura, por causa do Covid tivemos alguns atrasos. Fui contactada pela Câmara Municipal de Ovar, porque tinha estagiado lá, e surgiu a oportunidade de fazer uma obra para um proprietário privado, com o financiamento público (da Câmara de Ovar). A obra era uma fachada com 800 azulejos, uma fachada azulejar, como referi quando falei dos projetos que mais gostei até hoje. Foi através dessa obra que surgiu a criação do atelier. Ao ser contactada pela Câmara, quis agarrar esse trabalho e, então, decidi abrir o meu atelier. Situa-se numa antiga fábrica de sapatos, foi um espaço que me foi cedido pelos meus avós, daí ter tido a facilidade de criar o meu próprio atelier.
Os trabalhos mais frequentes são essencialmente fachadas azulejares, retábulos de Igrejas, a área retabulista, ou seja, esculturas, altares e essa tipologia de obras. Para além disso, fazemos também restauro de pinturas, móveis, cerâmicas, entre outros.
Como é ser uma mulher jovem numa área dominada por homens mais velhos?
Bem, ser mulher nesta área não é propriamente fácil, muito menos ser mulher e jovem. São duas desvantagens neste âmbito. Primeiro, porque lidamos diariamente com a construção civil e, embora isto seja um preconceito, na realidade muitas vezes não é fácil. Uma das questões que me fascinou mais no Mercado do Bolhão foi precisamente essa. Foi uma obra em que consegui trabalhar bastante bem com a construção civil, nomeadamente com homens e mais velhos, sem sentir qualquer tipo de constrangimento. No entanto, na generalidade, não é fácil por isso mesmo. Ouve-se muitas vezes “Menina, isto aprende-se é na obra, não é nos livros.”, presunção que fazem tanto por ser jovem como por ser mulher.
Consideras a Conservação e Restauro uma forma de Arte? Achas que as outras pessoas consideram?
A Conservação e Restauro pode e pode não ser considerada uma forma de arte. No Estatuto do Trabalhador Conservador Restaurador não podemos ser considerados artista, porque, no fundo, podemos recriar, não podemos criar algo novo. No entanto, temos total conhecimento de todas as técnicas que se usavam antigamente, para conseguir replicar o que já existia. Muitas vezes na Conservação e Restauro, incluindo em painéis azulejares figurativos, onde não se sabe qual era o resto da imagem, o que se opta muitas vezes por fazer é dar um tom neutro, em vez de tentar criar um desenho, sobre o qual não temos estudos ou informações suficientes para saber o que lá estava.
No entanto, pode sim ser uma forma de arte, pelas técnicas todas que estudamos, pelo conhecimento técnico e histórico que temos. Acho que pode ser considerado uma forma de arte, apesar de não ser muito entendido por alguns especialistas e investigadores.
Tens objetivos profissionais que possas partilhar connosco?
O meu principal objetivo profissional a longo prazo é conseguir abrir, efetivamente, empresa, porque neste momento encontro-me em situação de trabalhadora independente. Constituir uma empresa, conseguir empregar várias pessoas, conseguir ter várias obras a decorrer em simultâneo, ter especialistas em cada uma das áreas e alargar também o leque das áreas a trabalhar, de forma a conseguirmos dar resposta numa totalidade. Talvez abraçar também a área da construção civil, para avançarmos com a recuperação de um edifício na sua totalidade, ou seja, a reabilitação.
Intervenção de Conservação do Retábulo-mor da Igreja de Loureiro, Oliveira de Azeméis
Retirado do website martaborgescr.pt
O que desejas que mude na tua área ou na perceção dela?
Acho que o principal problema com que nos deparamos, hoje em dia, na área da conservação e restauro é, essencialmente, a precariedade do trabalho. Isto porque as empresas, devido à instabilidade do mercado, tanto têm obras, como não têm, o que leva a que contratem através de recibos verdes pessoal para certas obras, dispensam as pessoas, depois voltam a ser contratadas por outra empresa para outra obra. Portanto, há uma certa instabilidade ao nível do futuro. Isso é um dos principais problemas, também porque não existe um sindicato de conservação e restauro, apesar de já se falar muito nisso. Acho que este é o foco principal do que deveria mudar na área.
Por outro lado, temos também a competitividade no mercado que está cada vez mais alterada, no sentido em que, as empresas, cada vez dão orçamentos mais baixos, o que desvirtua imenso o mercado de trabalho e automaticamente contribui para a precariedade.
Algum conselho para jovens artistas?
O maior conselho que posso dar para outros jovens artistas é que tentem sempre, não é um caminho propriamente fácil, até porque a arte não é valorizada por muita gente. É um caminho que é preciso seguir com alguma coragem, porque nem sempre vai ser fácil. Demora muito tempo, mas se é uma coisa que se gosta e que realmente se faz com paixão vai dar certo.
Para saber mais sobre o Atelier Marta Borges, Conservação & Restauro, fica o website oficial:
martaborgescr.pt
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